Cândido Alberto Gomes
Ivar César Oliveira de Vasconcelos
Silvia Regina dos Santos Coelho
Organizadores
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ENSINO MEDIO:
impasses e dilemas
SUMARIO
PREFÁCIO.....7
INTRODUÇÃO...........11
O NOVO ENSINO MÉDIO: O DIFÍCIL CAMINHO À FRENTE.15
Simon Schwartzman
ENSINO MÉDIO: NEM PATINHO FEIO NEM CISNE?.....37
Cândido Alberto Gomes
Ivar César Oliveira de Vasconcelos
Silvia Regina S. Coelho
ENSINO MÉDIO NO BRASIL:
evolução de ideiam, propostas e perspectivas ...... 79
Célio da Cunha
CEM ANOS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO BRASIL:
SÍNTESE HISTÓRICA E PERSPECTIVAS .115
Francisco Aparecido Cordão
UMA NOVA CONCEPÇÃO DE ENSINO MÉDIO E TÉCNICO:
O olhar do Distrito Federal...... 155
Fernanda Marsaro dos Santos
Daniel Louzada-Silva
Ranilce Mascarenhas Guimarães-Iosif
ENSINO SECUNDÁRIO EM PORTUGAL
VELHOS DILEMAS E A NECESSÁRIA METAMORFOSE
José Matias Alves
187
CONCEPÇÃO, IMPLEMENTAÇÃO E EFICÁCIA DO
PROGRAMA DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS NO
ENSINO SECUNDÁRIO...
Cristina Costa-Lobo
Bárbara Quintela
Ana Cristina Almeida
217
0 NOVO ENSINO MÉDIO:
O DIFÍCIL CAMINHO À FRENTE
Simon Schwartzman 1
A Nova Lei do Ensino Médio
O ensino médio brasileiro foi redefinido pela Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro
de 2017 (BRASIL, 2017), que teve origem na Medida Provisória (MP) n. 746
de setembro do ano anterior (BRASIL, 2016), e tem como pontos principais a
diversificação do currículo escolar, que inclui o ensino técnico como uma das
opções de formação, e o financiamento ao ensino médio de tempo integral. A
intenção foi tentar resolver, ou pelo menos atenuar, os graves problemas do ensino
médio brasileiro, caracterizado pelas altas taxas de abandono e um currículo único
pretencioso, superficial e inviável, e totalmente orientado para a preparação para
o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), estreita porta de acesso ao ensino
superior público. 2 A expectativa é que, no novo formato, os estudantes possam
escolher suas áreas de formação, e que a preparação técnica deixe de ser uma
atividade complementar e se integre de forma mais plena à educação média.
1 Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, Rio dc janeiro.
2 Para um panorama geral do ensino médio brasileiro, e espccialmente do ensino técnico profissional, ver
Schwartzman, 2016.
15
A lei especifica vários aspectos do novo formato, como a distinção entre
a parte comum de formação e os chamados “itinerários formativos” e o tempo
dedicado a cada uma delas. Ela prevê que a Base Nacional Curricular Comum
para o ensino médio, ainda por ser elaborada, deve definir os “direitos e objetivos
da aprendizagem” em quatro grandes áreas, linguagens, matemática, ciências da
natureza e ciências humanas, cada qual acrescida da frase “e suas tecnologias”. E
também define estas quatro áreas como os possíveis “itinerários formativos” entre
os quais os estudantes poderão optar, às quais acrescenta a opção de formação
técnica e profissional. Na parte comum, ficam como obrigatórios a matemática,
português, inglês, educação física, arte, sociologia e filosofia, ocupando um total
máximo de 1,800 horas em três anos, ou seja, 75% da atual carga horária de
2.400 horas que é a que predomina ainda no país.
A lei dá um prazo de cinco anos para que a carga horária de todo o ensino
médio chegue a três mil horas, mas sem indicar de onde virão os recursos para
isto, e sem fazer nenhuma referência nem prever nenhuma medida para lidar
com o grave problema do ensino médio noturno, que em 2016 era atendido
por 23% dos alunos dos cursos regulares e mais de 60% dos alunos de cursos
técnicos, pelos dados do Censo Escolar. Por outro lado, aloca recursos federais
para complementar os custos de escolas públicas que pretendam implantar regime
de tempo integral. A previsão em setembro de 2016 era que o governo investiria
nisto 1,5 bilhões de reais em dois anos, elevando o número de estudantes em
tempo integral para 500 mil, ou aproximadamente 6% das matrículas. Neste
texto deixaremos de lado a questão do tempo integral, que só beneficia uma
pequena parcela dos alunos, e por isto não tem maior significado a curto e médio
prazo como política educacional.
A forma pela qual a nova legislação foi introduzida, como Medida Provisória,
foi criticada por muitos como autoritária, e defendida pelo governo como uma
maneira de levar à conclusão uma discussão que já vinha tramitando há anos
no Congresso Nacional, e que dificilmente seria aprovada com presteza. Mais
problemático do que isto é o fato de que a nova legislação não veio acompanhada
de um documento que dissesse com clareza quais eram seus objetivos, e de que
maneira os diversos dispositivos da Lei contribuiriam para eles. Na prática, a lei
incorporou uma série de ideias que já vinham sendo discutidas sobretudo no
16 | Simon Schwartzman
âmbito do Conselho de Secretários de Estado da Educação (Consed), e que foram
sendo ajustadas ao longo da tramitação da MP, em função de manifestações de
diferentes setores dentro e fora do sistema educativo. As decisões mais substantivas
sobre o que os alunos deverão aprender foram adiadas e passadas para o Ministério
da Educação, responsável pela elaboração das Bases Nacionais Curriculares do
Ensino médio.
Os debates havidos durante e depois da tramitação da nova legislação
mostram grande incerteza sobre como esta nova legislação será implementada,
e que resultados obterá. As dúvidas incluem, entre outras, a questão do peso
relativo e do conteúdo da parte geral e dos itinerários formativos; a questão de
como as opções serão oferecidas e escolhidas pelos alunos; a questão dos conteúdos
do ensino técnico e profissional; e a questão de como os resultados das diferentes
opções na área técnica e acadêmica serão avaliados e validados.
A polêmica da formação geral e diferenciação do ensino médio
A nova legislação, aparentemente, rompe com o entendimento havido no
Brasil nos últimos anos, e sancionado pelo Conselho Nacional de Educação,
de que o ensino médio deveria ser abrangente, cobrindo 13 ou mais disciplinas
obrigatórias, e igual para todos. Esta concepção, curiosamente, combina duas
concepções antagônicas. A primeira é a visão tradicional do ensino médio como
curso elitista e propedêutico, voltado exclusivamente à preparação para o ensino
superior. A segunda tem origem nas teorias pedagógico-políticas do intelectual
marxista italiano Antonio Gramsci, que, escrevendo nos anos 30, criticava a
separação que havia na Europa entre o ensino acadêmico, destinado aos filhos
das classes médias e altas que se preparavam para as universidades, e o ensino
profissional, que preparava os filhos de operários para as atividades mais práticas e
intelectualmente menos demandantes requeridas pelo mercado de trabalho. Esta
divisão, segundo ele, perpetuava a hegemonia intelectual das classes médias e
altas sobre a classe operária, situação que só poderia ser revertida se os filhos dos
operários tivessem a mesma educação clássica e geral proporcionada aos filhos
da burguesia. A partir de uma perspectiva de esquerda, Gramsci defendia uma
O novo ensino médio: o difícil caminho à frente I 17
pedagogia conservadora, que inclusive se opunha à incorporação de componentes
da cultura popular e local nos currículos escolares (ENTWISTLE, 1979). Estas
teorias foram trazidas ao Brasil por diversos autores de formação marxista, e
adotadas pelo Conselho Nacional de Educação.
Para conciliar a concepção tradicional da educação secundária com a
necessidade de abrir espaço para a educação profissional, o Conselho Nacional de
Educação elaborou uma concepção segundo a qual as dezenas ou centenas de áreas
diferentes de formação profissional estariam agrupadas em “eixos tecnológicos”,
dotados, cada um, de uma “matriz tecnológica” e um “núcleo politécnico comum
correspondente a cada eixo tecnológico em que se situa o curso, que compreende os
fundamentos científicos, sociais, organizacionais, econômicos, políticos, culturais,
ambientais, estéticos e éticos que alicerçam as tecnologias e a contextualização do
mesmo no sistema de produção social” (BRASIL, 2012, cap. 2). Os alunos do
ensino técnico deveriam não só estudar esta “matriz” e este “núcleo politécnico”
como também “os conhecimentos e as habilidades nas áreas de linguagens e
códigos, ciências humanas, matemática e ciências da natureza, vinculados à
Educação Básica”, de acordo com as especificidades dos cursos técnicos. Com
isto, o Brasil se tornou o único país do mundo em que as exigências de formação
técnica, ou vocacional, são maiores do que as da educação geral.
E importante dizer que esta noção de que o mundo das profissões e das
técnicas está organizado em “matrizes tecnológicas” e “núcleos politécnicos” é
uma construção cerebral com pouca ou nenhuma relação com a realidade de
como as profissões realmente se estruturam e como as tecnologias se organizam
e se desenvolvem. A tecnologia e o conhecimento não se organizam de forma
hierárquica, a partir de matrizes, fundamentos ou núcleos politécnicos, mas por
processos muito mais abertos e diversificados, que vão incorporando práticas e
conhecimentos que são ou não organizados em teorias ou tradições de trabalho
mais ou menos estruturadas, e em permanente modificação (GIBBONS et ah,
1994). O equívoco deste entendimento adotado pelo Conselho Nacional de
Educação não teria maior importância se não tivesse levado, na prática, a três
consequências sérias: primeiro, ao tornar o ensino técnico e profissional tão ou
mais difícil e complexo do que o ensino médio geral, já que precisaria incorporar
toda esta matriz tecnológica, e mais o núcleo politécnico, e mais os conhecimentos
18 1 Simon Schwartzman
e habilidades gerais da linguagem, ciências humanas, matemática e ciências da
natureza; e segundo, à criação de um agrupamento em grande parte arbitrário
das centenas de profissões listadas pelo Ministério da Educação em 13 “eixos
tecnológicos” que têm sido usados em propostas de organização dos currículos e
dos sistemas de avaliação do ensino profissional (BRASIL, 2015).
A terceira consequência foi o uso do conceito de “politecnia” para justificar,
em 2008, a transformação dos antigos Centros Federais de Educação Técnica
(Cefets) de nível médio em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
de nível superior, que se propõem a oferecer ensino técnico e médio de forma
integrada tal como postulado pelo CNE a um número pequeno e selecionado
de estudantes - 151 mil, segundo o censo escolar de 2016, em um. contingente
de oito milhões de estudantes de ensino médio no país. Para os professores e
funcionários dos antigos Cefets, foi um ganho importante em termos de carreira
e prestígio profissional, já que foram promovidos do nível médio para o nível
superior. Sobre os estudantes, não há informações suficientes para dizer se eles
de fato estão efetivamente adquirindo uma “formação politécnica” ou, como
parece ser o caso, estão simplesmente aproveitando a oportunidade de estudar
em tempo integral em escolas bem equipadas e financiadas para disputar vagas no
ensino superior. De fato, no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) de 2015,
em torno de 32 mil alunos de estabelecimentos federais participaram, obtendo
uma média de 590 pontos, superior à dos estudantes de escolas privadas, 580,
e muito acima dos estudantes das escolas estaduais, 490 pontos (tabulação dos
microdados do Enem 2015). Além do privilégio das condições excepcionais de
estudo que tiveram, estes estudantes também são considerados cotistas, por serem
provenientes de escolas públicas. Não se trata, claramente, de uma alternativa de
formação para a grande massa de jovens que hoje mal acedem ao ensino médio e
não têm chances de chegar ao ensino superior.
A adoção de um currículo único de tipo acadêmico, orientado sobretudo
para preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio, e as altas exigências
postas sobre a educação profissional, supõem que seja possível recuperar nos
três anos do ensino médio as competências que não foram adquiridas até então,
e ainda proporcionar os ambiciosos conteúdos do currículo tradicional. Esta
suposição é totalmente irrealista, e o resultado é que, ou os cursos baixam as
O novo ensino médio: o difícil caminho à freme | 19
expectativas, reduzindo ao mínimo o que os estudantes precisam fazer para
receber o certificado de ensino médio, ou mantêm níveis altos de exigência para
os que vêm com mais recursos e se preparam para as universidades, fazendo com
que os demais percam o interesse e acabem abandonando os estudos. Além disto,
como os cursos mais exigentes se dedicam sobretudo a preparar os estudantes
para o Enem, fica a dúvida de se estes cursos realmente dáo aos alunos uma boa
formação ou simplesmente um treinamento para as provas.
Além dos altos desníveis de formação prévia dos estudantes, existem também
diferenças de motivação que fazem com que os estudantes tenham mais interesse
em, digamos, ciências sociais do que em ciências naturais ou literatura. Ao chegar
com 15 anos no ensino médio, os jovens já vêm com uma condição educacional em
grande parte consolidada, adquirida em maior ou menor grau desde o ambiente
materno e a pré-escola, e muito difícil de alterar; já têm ideias e interesses próprios
e diferentes sobre o que gostariam de fazer e ser; e não têm capacidade, mesmo os
mais qualificados, de seguir com proveito e em profundidade 13 ou 15 matérias
diferentes. O ideal renascentista de uma educação completa em todas as áreas do
conhecimento, se já era questionável no passado, é completamente anacrônico
no século 21, com a gigantesca expansão havida da ciência e da tecnologia em
todas as áreas. Se estes fatos bastam para mostrar a inviabilidade do ensino médio
tradicional, eles não são suficientes, no entanto, para dizer como este novo ensino
médio deve ser organizado.
Os conteúdos da formação comum
Uma parte importante da discussão sobre a nova Lei do Ensino Médio foi
a questão do peso relativo da parte comum e da parte diferenciada no currículo.
A opção era entre manter o sistema atual, introduzindo alguma flexibilidade de
escolha, ou fazer uma diferenciação efetiva, fazendo com que os estudantes pudessem
efetivamente se concentrar, desde o início, em suas áreas opcionais de formação.
Sem cair nos exageros e no formalismo das resoluções do Conselho
Nacional de Educação, existem boas razões para defender a importância de uma
educação que proporcione a todos os estudantes do ensino médio conhecimentos
20 | Simon Schwartzman
e competências mais gerais que lhes permitam exercer mais opções ao longo da
vida, e não os aprisione em uma capacitação estreita, que pode ser efêmera, dada a
alta velocidade das mudanças tecnológicas que vêm ocorrendo em todo o mundo;
e é possível identificar, na prática e de forma indutiva, conjuntos de atividades
profissionais que compartem as mesmas tecnologias e requerem conhecimentos
científicos semelhantes, e por isto podem ser ensinadas de forma agrupada.
Existe um forte consenso de que todos os estudantes, independentemente
de suas áreas de formação, precisam ter o domínio da língua portuguesa e do
raciocínio matemático, e que a capacitação nestas áreas, que é precária na grande
maioria das escolas de educação fundamental, deve continuar no nível médio.
Existe também consenso que a língua inglesa, como “língua franca” internacional,
deve fazer parte do currículo comum. Também existe consenso de que a educação
média deve incluir conteúdos que desenvolvam e ampliem a cultura cívica dos
estudantes, ou seja, sua compreensão sobre as características e os problemas da
sociedade mais ampla em que vivem. Existem duas questões em relação a isto,
o relacionamento entre esta parte geral ou comum da formação e os itinerários
formativos, e o tamanho e conteúdos específicos desta parte comum.
O ideal é que os estudantes desenvolvam sua capacidade de uso da linguagem,
da matemática, do inglês e de cultura cívica no contexto de suas áreas de formação,
e não de forma separada e em abstrato. Isto, aliás, estava previsto na Resolução
do Conselho Nacional, de Educação de 2012, ao postular que a formação geral
deveria “permear o currículo dos cursos técnicos de nível médio, de acordo com
as especificidades dos mesmos, como elementos essenciais para a formação e o
desenvolvimento profissional do cidadão” (BRASIL, 2012, art. 13, III). Fazer isto
não é trivial, e depende muito de como o currículo escolar se organiza. A prática,
no Brasil, tem sido a de organizar uma grade curricular com uma distribuição
das matérias pelos horários ao longo da semana, cada uma com um professor
responsável por um currículo a ser cumprido, ficando por conta do aluno juntar
estes assuntos diferentes em sua cabeça; e, nos poucos cursos técnicos que existem,
a parte geral e a parte técnica são dadas de forma separada, frequentemente em
turnos distintos, sem nenhum diálogo ou integração pedagógica e temática entre
si. Esta fragmentação existe na educação brasileira desde o início da segunda etapa
da educação fundamental, no sexto ano, quando os estudantes deixam de ter uma
O novo ensino medio: o difícil caminho à frente | 21
professora única e passam a ter uma professora por matéria, e tem sido apontada
como uma das causas da desorientação e perda de interesse que ocorre de forma
crescente a partir deste nível. Este problema poderia ser minorado se houvesse
um esforço mais sistemático de coordenar os conteúdos das diversas disciplinas,
e se cada estudante fosse vinculado a uma orientadora de referência com quem
pudesse conversar sobre a organização e o planejamento de seus estudos. Em um
sistema diversificado de ensino médio, a coordenação do currículo, incluindo a
parte comum, deveria ser de responsabilidade da área diversificada, que também
deveria ter a responsabilidade pela orientação individualizada dos alunos. Com
isto o ensino de matemática, por exemplo, poderia ser dado de forma aplicada
às questões típicas da área de formação, e o mesmo se faria com os conteúdos de
língua portuguesa, inglês, e às questões de natureza social.
Este tema, da integração efetiva entre a parte comum e a parte opcional de
formação, não apareceu nas discussões da Medida Provisória, que se concentraram
na questão do número de horas a serem dedicadas a cada uma das partes e das
matérias a serem incluídas. Na Medida Provisória, a previsão era que o tempo
máximo para a parte comum seria de 1.200 horas, igual, portanto, ao tempo dos
itinerários de formação. Na versão final, o tempo da parte comum foi ampliado
para 1.800 horas, e ainda foi incluída a obrigatoriedade do ensino da educação
física, artes, sociologia e filosofia, que não constavam da MP. A outra inovação
da lei em relação à Medida Provisória foi a referência explícita às quatro áreas do
conhecimento (linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas),
uma classificação que data dos parâmetros curriculares de 2000, não só como o
conteúdo da Base Nacional Curricular Nacional, mas também como os quatro
possíveis itinerários formativos, além da formação técnica e profissional.
Estas modificações significaram um claro retrocesso da lei em relação
à proposta que vinha sendo discutida no Consed e que serviu de base para a
Medida Provisória. A não referência às artes, educação física, sociologia e filosofia
na Medida Provisória foi intencional, não porque estes conteúdos fossem
considerados sem importância, mas porque se buscava voltar à concepção original
da Lei de Diretrizes e Bases de 1996, que mencionava estes diferentes conteúdos
de forma genérica, mas que foram depois transformados em obrigatoriedade
legal pelo Congresso, como resultado da mobilização das respectivas corporações
22 | Simon Schwartzman
profissionais, sobrecarregando e enrijecendo o currículo. A nova lei do ensino
médio eliminou a obrigatoriedade do ensino do espanhol, que havia sido
estabelecida pela Lei n. 11.161, de 5/8/2005 (BRASIL, 2005), mas não ousou
fazer o mesmo com as demais. A obrigatoriedade da educação física consta da
Lei n. 10.793, de I o /12/2003 (BRASIL, 2003). A obrigatoriedade do ensino
da sociologia e da filosofia em todas as séries do ensino médio foi estabelecida
por lei em 2008, Lei n. 11.684 (BRASIL, 2008), deixando de lado conteúdos
pelo menos tão relevantes das ciências sociais como a economia, o direito e a
antropologia; e obrigatoriedade do ensino de artes foi criada pela Lei n. 13.278
(BRASIL, 2016). Nada disto foi alterado.
O resultado foi que os itinerários formativos, que na versão inicial da MP
deveriam ser a parte central do ensino médio, passaram a ser uma parte menor e
secundária. Ainda que sem mencionar, a nova legislação dá continuidade à ideia,
enfatizada no documento dos Parâmetros Curriculares de 2000, de que o ensino
médio deve ser parte da educação básica, “a etapa final de uma educação de caráter
geral, afinada com a contemporaneidade, com a construção de competências
básicas, que situem o educando como sujeito produtor de conhecimento e
participante do mundo do trabalho, e com o desenvolvimento da pessoa, como
‘sujeito em situação’ - cidadão”, e não, como ocorre no resto do mundo, uma etapa
distinta, de transição entre os estudos gerais e a vida profissional (BRASIL, 2000).
Na maior parte do mundo, a educação até os 17 ou 18 anos, fora a pré-escola,
se divide em três níveis, o primário, o secundário inferior e o secundário superior.
Na classificação internacional da educação adotada pela (L1NESCO, 2011), a
educação primária, de nível 1, se destina a “prover os estudantes com as habilidades
fundamentais em leitura, escrita e matemática (ou seja, alfabetização e cálculo) e
estabelecer uma base sólida para aprender e compreender as principais áreas do
conhecimento e desenvolvimento pessoal e social”. No secundário inferior, nível
2, o objetivo “é expandir os conhecimentos e competências da educação primária,
criando os fundamentos para a expansão de oportunidades educacionais ao longo
da vida”. O secundário superior de nível 3, finalmente, se destina a “completar o
ensino secundário em preparação para o ensino superior ou fornecer habilidades
relevantes para o emprego, ou ambos”. Os programas deste nível oferecem aos
estudantes uma instrução mais especializada e aprofundada do que os do nível
O novo ensino médio: o difícil caminho à frente 23
anterior. Eles são mais diferenciados, com a disponibilidade de um leque crescente
de opções e itinerários. Os professores são em geral altamente qualificados nos
temas ou especializações que ensinam, particularmente nas séries mais avançadas.
O Brasil já havia se afastado das melhores práticas internacionais ao
fundir a antiga educação primária com o antigo ginásio, criando uma educação
fundamental de 8 e depois 9 anos e que na prática continuou dividida em dois
ciclos, unificados somente no papel e na burocracia administrativa. Os parâmetros
curriculares para o ensino médio, ao eliminar a possibilidade de opções no ensino
médio, acentuaram este afastamento. O objetivo da nova lei do ensino médio era
reaproximar o Brasil das práticas internacionais, o que se frustrou em grande parte
pela ampliação excessiva da parte comum com inclusão de matérias obrigatórias,
em detrimento do espaço para os itinerários formativos e a formação profissional.
As áreas de conhecimento e os itinerários formativos
Ignorando os argumentos em contrário e sem considerar as experiências de
outros países, a Medida Provisória optou por listar, como itinerários optativos,
a mesma classificação de três “áreas de conhecimento” adotada nos parâmetros
nacionais curriculares para o ensino médio de 2000, e transformada em quatro
nos anos seguintes com a separação da matemática. É uma classificação estranha,
que junta no mesmo grupo de “Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias” coisas
totalmente distintas como Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Arte,
Educação Física e Informática, que requerem formação e opções profissionais
total mente distintas. A área de “Ciências Humanas e suas Tecnologias” engloba
Filosofia, Geografia, História e Sociologia, e ignora a existência da Economia
e do Direito; e a área de “Ciências da Natureza e suas Tecnologias” incluía
original mente Física, Química, Biologia e Matemática. Como os matemáticos
não se sentiam confortáveis neste grupo, e menos ainda no grupo das linguagens,
acabaram conquistando o direito a uma categoria própria.
Diversos documentos do Ministério da Educação, e em especial as Orientações
Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais de 2002,
PNC+ Ensino Médio (BRASIL, 2002), tratam de justificar esta classificação e
24 | Simon Schwartzman
mostram a necessidade da interdisciplinaridade, mas, na prática, com o currículo
organizado por disciplinas estanques, a maneira pela qual elas sáo classificadas
é irrelevante. O acréscimo da expressão “e suas tecnologias” a cada categoria
exprime a intenção de juntar a teoria com a prática, o que praticamente nunca
ocorre. A classificação se tornou importante quando foi utilizada, a partir 2009,
para organizar as provas do Enem, e a mesma classificação foi mantida agora para
os itinerários formativos na nova lei do ensino médio.
Uma comparação com as opções adotadas na França para as provas do
Baccalauréat , que marcam a conclusão do ensino médio, mostra o equívoco
desta classificação. Existem três tipos de Bac , o geral, que é mais acadêmico,
o tecnológico e o profissional. O geral se divide em três linhas, o econômico e
social, o literário e o científico; o tecnológico prepara para a pesquisa científica
e tecnológica tanto industrial quanto na área de serviços e administração, assim
como para cursos avançados na área tecnológica; e o profissional prepara para
carreiras técnicas menos especializadas.
A grande virtude do modelo francês é que ele está organizado em função
das futuras alternativas de estudo avançado e de inserção na vida profissional
e no mercado de trabalho, e não de uma classificação arbitrária de “áreas de
conhecimento”. No Brasil ainda não se reconhece a distinção que existe em todo
mundo entre as ciências sociais, que incluem a economia e a sociologia, e as
humanidades, que incluem a literatura, a filosofia e as artes. Não é uma divisão
estanque, inclusive pela existência de diferentes correntes de trabalho dentro das
ciências sociais que se aproximam mais das humanidades do que das ciências
sociais, mas nem por isto deixa de ser importante, pois aponta para atividades
profissionais e intelectuais bem distintas. Esta distinção aparece claramente no
formato francês, que coloca de um lado a área econômica e social, e por outro
a literária, que inclui línguas, literatura e artes. A matemática não aparece na
França como área isolada, porque é um componente indispensável de todas as
demais, tanto quanto a língua materna; e na área de formação profissional existe
uma distinção clara entre a formação de alto nível, tecnológica e aplicada, e a
formação profissional mais básica, vocacional.
Se, por um lado, a nova legislação do ensino médio frustra o objetivo de
criar verdadeiras opções de formação no ensino médio, por outro, ela facilita o
O novo ensino médio: o difícil caminho à frente J 25
trabalho das secretarias de educação e das escolas, que podem continuar fazendo
basicamente o mesmo que já faziam, alterando simplesmente a carga horária das
diversas disciplinas para os alunos. Muito se tem falado, depois da promulgação da
nova lei, sobre a situação de um grande número de municípios que têm somente
uma escola, e que teriam dificuldade em oferecer um currículo com diferentes
opções de formação. Isto seria um problema se estas opções significassem uma
forte estruturação dos currículos ao redor de temas como artes e literatura, por
um lado, e ciências econômicas e sociais, por outro, ou ciências naturais, por
exemplo; mas não tem maior dificuldade se o que se pretende é simplesmente
permitir que os alunos possam dedicar mais horas a determinado conjunto de
disciplinas do que a outros.
Mas uma diversificação efetiva dos currículos não pode consistir
simplesmente na escolha de algumas matérias em lugar de outras, embora isto
seja um primeiro passo e um avanço em relação ao modelo unificado vigente.
E necessário que exista, dentro da escola, uma coordenação específica para cada
itinerário oferecido, que possa zelar pela coerência do currículo, integrando a
parte de formação específica com a de formação geral, em permanente diálogo
com os professores e alunos. Em outras palavras, é necessário ter um ou mais
projetos pedagógicos bem estruturados e que sejam mais do que uma simples
declaração de intenções. Fazer isto não é simples, e por isto mesmo é de se esperar
que a efetiva implantação de um sistema diferenciado de itinerários seja um
processo relativamente lento e gradual.
As questões da educação vocacional
As discussões havidas e a repercussão da reforma do ensino médio na
imprensa deram destaque aos possíveis problemas com a diversificação do
currículo acadêmico, mas quase não tocaram na questão muito mais complicada
de como ampliar e incorporar a educação vocacional no novo modelo. 3
3 O termo ‘Vocacionai” é melhor do que o “técnico”, utilizado no Brasil para designar a educação profissio¬
nal de nível médio, que transmite a ideia falsa de que se trata de uma educação voltada para as tecnologias
industriais, quando na realidade abrange todo o conjunto de qualificações práticas para o mercado de
trabalho, em grande parte na área de serviços.
26 | Simon Schwartzman
Idealmente, os cursos vocacionais deveriam proporcionar ao estudante
uma qualificação valorizada no mercado de trabalho, sem descuidar da formação
geral, e permitindo que ele possa, se quiser, prosseguir seus estudos em nível
pós-secundário ou universitário. A nova legislação resolve o terceiro objetivo, ao
integrar o ensino vocacional ao médio, que deixa de ser um curso complementar;
e tenta resolver o segundo, com as limitações já discutidas, ao estabelecer o
requisito de uma base de formação comum. O primeiro objetivo, no entanto, é
mais difícil de assegurar.
No novo modelo, formalmente, a opção pelo itinerário técnico e profissional,
ao invés de um dos itinerários acadêmicos, é uma escolha dos estudantes, dentro
da oferta disponível. No entanto, dada a grande valorização que existe na cultura
brasileira do diploma universitário, e o grande diferencial de renda entre pessoas
de educação média e superior, a opção peio itinerário técnico acaba funcionando,
na grande maioria dos casos, como uma segunda opção para os estudantes que,
por suas condições prévias de formação ou de situação econômica, não teriam
condições de ingressar no nível superior. Este não é o caso do pequeno número
de jovens estudantes que conseguem entrar, através de exames seletivos, nos
poucos cursos técnicos de tempo integral dos institutos federais ou do Centro
Paula Souza, que na verdade se valem do privilégio para se prepararem para os
cursos superiores. Mas não é para eles que o ensino médio vocacional precisa
se expandir e consolidar. O público preferencial para os estudantes do ensino
vocacional são os milhões que hoje estão nos cursos médios de baixa qualidade,
nos cursos noturnos e na Educação de Jovens e Adultos (EJA), cujas limitações,
dificuldades e necessidades específicas precisam ser consideradas.
Uma questão central aqui, amplamente reconhecida, mas raramente tratada
de forma explícita, é em que medida o ensino vocacional é uma maneira de lidar
com o grande número de pessoas que chegam ao ensino médio sem as mínimas
condições de concluir o currículo propedêutico tradicional, seja pela precariedade
da formação anterior, ou por necessidade de trabalhar, ou, quase sempre, por
uma combinação das duas. A única alternativa .oferecida a estas pessoas no
sistema antigo era a chamada “Educação de Jovens e Adultos” (antigos cursos de
madureza), uma maneira compacta de pessoas mais velhas cumprirem o currículo
acadêmico em menos tempo, cuja eficácia é reconhecidamente muito baixa, tanto
O novo ensino médio: o difícil caminho à frente j 27
pelos altos níveis de evasão quanto pela precariedade da formação proporcionada
(no Enem de 2016 havia 269 mil candidatos que declararam ter cursado o ensino
médio total ou parcialmente em cursos EJA, e sua média de nota foi 470 pontos,
muito abaixo da média de 514 dos alunos do ensino médio regular).
A maneira correta de se lidar com esta enorme diferenciação que existe na
população estudantil é oferecer uma ampla variedade de itinerários formativos,
que possam ser adequados aos diferentes níveis de formação e condição de vida, e
permitir que avancem a partir daí. O exemplo da França aponta para o como lidar
com esta questão. Primeiro, existe uma clara distinção entre cursos tecnológicos
mais complexos e cursos de formação técnica profissional mais simples. Depois,
os cursos técnicos se dão em parceria com o setor produtivo, combinando estudo
com experiência prática; existe uma via de formação centrada na aprendizagem, e
a possibilidade de adquirir um “certificado de aptidão profissional” ou um brevet
de estudos profissionais intermediários. Nos Estados Unidos, as high schools
oferecem uma ampla variedade de escolhas, de tal maneira que todos terminam
com alguma qualificação, mas não necessariamente as mesmas. As competências
mais gerais, que devem ser comuns a todos, se resolvem tanto quanto possível
no secundário inferior, ou seja, no que corresponde no Brasil ao segundo ciclo
do ensino fundamental, ou então de forma integrada e no contexto das áreas
de formação diferenciadas. A decisão dos legisladores brasileiros de manter
um currículo comum de nível médio ocupando a maior parte do tempo dos
estudantes, inclusive os das carreiras vocacionais, pode funcionar como uma grave
barreira para muitos estudantes para os quais estes conteúdos, se dados de forma
convencional e dissociados de sua área de formação, continuarão significando
uma grande perda de tempo e um mecanismo de reprovação e exclusão, como
ocorre hoje com o sistema unificado.
Que tipo de formação, além da parte comum, deve ser dada aos estudantes
nos itinerários vocacionais? Existe um consenso crescente entre os especialistas
que os trabalhos de rotina, braçal ou intelectual, está desaparecendo rapidamente
pela automação digital e pela inteligência artificial, e que faz pouco sentido
formar pessoas para profissões rotineiras que estão em processo de extinção. Cada
vez mais, os mercados de trabaJho exigem, em uma ponta, pessoas capazes de
trabalhar em atividades complexas que requerem alto nível de formação; ou,
28 I Simon Schwartzman
na outra, em atividades de relacionamento e serviços personalizados, em que
predomina a necessidade de competências emocionais e sociais de autocontrole,
motivação, responsabilidade, capacidade de relacionamento social e de trabalhar
em equipe, que pressupõem, como requisito mínimo, o domínio da língua
culta. Se estas transformações no mercado de trabalho vão criar uma situação
permanente de desemprego para grande parte da população, ou se, como afirmam
os economistas, os empregos tradicionais serão substituídos por novos tipos de
emprego e de trabalho, ainda está por ser visto. Hoje, o que se observa no Brasil e
em muitos outros países é um forte desemprego que atinge sobretudo às pessoas
mais jovens, e que não parece que pode se reverter simplesmente com a reativação
e modernização da economia.
Este problema do desemprego que atinge com mais força os mais jovens
e os menos educados não pode ser resolvido pela educação vocacional, mas é
necessário lidar com ele oferecendo conhecimentos e experiências educacionais e
práticas mais ricas, que incluam uma ênfase explícita nas competências emocionais
e sociais, dando aos estudantes a flexibilidade para adquirir novas competências
quando necessário, e se adaptar a um mercado de trabalho cambiante.
A experiência internacional mostra que os sistemas mais bem-sucedidos de
formação vocacional são aqueles em que o componente de aprendizagem prática
é mais forte. A aprendizagem consiste no envolvimento direto do estudante na
execução do trabalho em uma empresa, sob a supervisão e orientação de um
profissional mais experiente. Para que ela possa ocorrer, a empresa tem que estar
interessada e envolvida neste trabalho educativo, e atuar em colaboração com as
autoridades educacionais para combinar o aprendizado prático com a formação
geral dada no ambiente escolar. A legislação brasileira estabelece a obrigatoriedade
de contratação de jovens aprendizes nas empresas de médio e grande porte. Lei n.
10.097, (BRASIL, 2000), mas, ao mesmo tempo, impede que os menores de 18
anos participem de fato das oficinas e linhas de produção, e atribui ao sistema S S’
a responsabilidade pela formação profissional dos alunos. O resultado na prática
é que, ao invés de se constituir em um processo de alta qualificação profissional
com participação do setor produtivo, fortemente vinculado ao ensino médio
e mesmo superior, como ocorre em outros países, o sistema de aprendizagem
profissional brasileiro funciona sobretudo como um programa assistencial
O novo ensino médio: o diíícli caminho à írente 1 29
para um número limitado de jovens carentes, cujo resultado do ponto de vista
formativo é desconhecido, mas provavelmente muito baixo.
O sistema brasileiro de aprendizagem precisa ser modificado e se expandir,
mas este processo será necessariamente lento e gradual. Existem outras formas
menos estruturadas de cooperação com a educação vocacional e o sistema
produtivo que podem ser implementadas desde já, com parcerias locais para a
identificação de demandas de mão de obra, envolvimento do setor empresarial
na definição dos currículos dos cursos, estágios, cessão de equipamentos, e outras
formas. A nova legislação permite que pessoas com experiência no mercado de
trabalho, mas sem titulação formal, possam se qualificar como professores e
instrutores da educação vocacional. Este tipo de colaboração das escolas com o
setor produtivo não faz parte da cultura das redes escolares brasileiras, mas pode
e deve ser ampliado.
A questão das certificações e avaliações
Uma questão final relativa ao ensino médio como um todo, mas que afeta
particularmente aos estudantes dos itinerários vocacionais, é como certificar
e avaliar os resultados dos cursos. No Brasil não existem exames nacionais de
certificação do ensino médio, como o Bac francês ou o Abitur alemão, e cada
escola certifica os alunos que gradua, a partir da autorização que têm de funcionar
como estabelecimento de ensino. Em princípio, as escolas podem continuar a fazer
isto no sistema diferenciado, simplesmente registrando, no diploma, o itinerário
formativo seguido pelo estudante. Existe o risco, no entanto, de que este registro
se transforme em uma mera formalidade burocrática, tal como ocorreu com
a obrigatoriedade de formação profissional no ensino médio estabelecida pela
legislação de 1971, Lei n. 5.692 (BRASIL, 1971), que acabou sendo revogada por
impraticável. O mais adequado seria que os projetos pedagógicos dos diferentes
itinerários formativos passassem por uma avaliação externa, a partir da qual as
escolas ficassem autorizadas a emitir os respectivos certificados de conclusão. Para
os cursos vocacionais, ou as escolas teriam que obter autorizações específicas para
cada uma das opções que ofereçam, ou as certificações seriam dadas por parceiros
30 | Simon Schwartzman
que tenham esta competência reconhecida, como é o caso das instituições do
sistema S ou, em alguns casos, as respectivas associações profissionais. Um sistema
como este não pode ser implantado da noite para o dia, porque corre o risco de se
transformar em mais um dos rituais burocráticos que sobrecarregam inutilmente
o sistema escolar do país. Mas talvez seja possível criar uma certificação voluntária
das escolas que decidam submeter seus programas de formação diferenciada à
avaliação externa, e incentivos para que isto seja feito.
O mais próximo que existe no Brasil a uma certificação externa do ensino
médio é o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, que é uma prova voluntária,
cujo resultado não aparece no registro escolar nem no diploma do estudante, e
cujo principal objetivo é qualificar o estudante para ingressar nas universidades
públicas, ou obter uma bolsa de estudos ou financiamento para o ensino superior
privado. O novo ensino médio requer substituir o atual Enem por uma avaliação
que tome em conta a diversificação do currículo que está sendo implementada.
O caminho, para as opções de formação geral, é relativamente simples: dividir
o atual exame em duas partes, uma mais geral, centrada nas competências de
linguagem e matemática, e a outra, dividida em exames específicos para os
diferentes itinerários formativos. Para o ensino técnico e profissional, o que tem
sido proposto é que fossem realizados treze exames diferentes, correspondentes
aos treze “eixos tecnológicos” definidos pelo Ministério da Educação. A grande
dificuldade é que estes eixos padecem do mesmo problema que a classificação
das áreas de conhecimento: eles são um agrupamento em arbitrário, dado que as
“matrizes tecnológicas” e os “núcleos tecnológicos” não existem no mundo real,
O eixo de “ambiente e saúde”, por exemplo, inclui técnicos em equipamentos
biomédicos, técnico em meteorologia e técnico em prótese dentária; o eixo de
“desenvolvimento educacional e social” inclui técnico em biblioteconomia e
técnico em tradução e interpretação de Libras, e assim por diante.
Muitos países têm lidado com este problema pela criação de um “marco
nacional de qualificações” {National Qualifications Framework ) que definiria em
detalhe as competências requeridas de cada profissão, assim como os mecanismos
de certificação para estas competências. Embora recomendados por organismos
como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estes marcos nacionais
têm sido criticados, entre outras coisas, por excesso de detalhe e proliferação de
O novo ensino médio: o difícil caminho à frente | 31
profissões e certificados irrelevantes e não reconhecidos pelo mercado de trabalho
(ALLAIS, 2001; WOLF, 2011) Já houve no Brasil um esforço inicial de desenvolver
um marco de competências deste tipo, mas parece mais prudente, pelo menos no
primeiro momento, identificar algumas áreas de maior demanda que comportem
ou requeiram uma certificação profissional, a ser feita com a participação de
entidades públicas ou privadas que tenham competência para isto, e deixar a
validação dos demais cursos para os responsáveis pela sua implementação, sejam a
própria escola ou instituições parceiras como o Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial (Senai) ou Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac).
Conclusões
Esta revisão de alguns dos pontos principais da nova lei do ensino médio
não nos transmite muito otimismo sobre o sucesso de sua implementação. Se
trata de uma lei tímida, que mantém muitas das preconcepções e preconceitos do
sistema anterior, e não abre espaço suficientemente amplo para a diferenciação
requerida. As questões mais fundamentais dos currículos foram transferidas para
as Base Nacional Curricular Comum que deverá ser sancionada pelo Conselho
Nacional de Educação, cuja tradição até aqui tem sido contrária a um sistema
diferenciado. E o governo nada disse sobre a necessidade de alterar o Enem para
se adaptar ao novo sistema.
Independentemente das limitações da nova lei, existem muitas experiências
interessantes de diversificação e de aumento da oferta de educação vocacional que
estão ocorrendo, sobretudo no setor privado, que fica geralmente fora do radar
do Ministério da Educação e suas agências reguladoras. A nova lei precisa ainda
ser regulamentada, e existe a possibilidade de que ela seja interpretada de forma
ampla, deixando margem às redes escolares para experimentar diferentes modelos
de organização dos cursos em suas diferentes modalidades.
Em todas as partes do mundo, o ensino médio é complexo, com diferentes
trajetórias, diplomas e certificados, no esforço de atender às grandes diferenças
dos estudantes e das demandas de qualificações do mercado de trabalho e do
ensino superior. A atual lei brasileira abre uma janela neste sentido, que, ou
32 | Simon Schwartzman
se mostrará suficiente para permitir que o ensino médio melhore e crie mais e
melhores oportunidades para a população estudantil, ou vai precisar ser revista
em um futuro próximo.
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Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes
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